27 de ago. de 2015

Lembranças da tarde

Sente sem pressa o vento percorrer a tarde e tocar seu rosto. Sentado no murinho do terraço com a cabeça recostada à parede, uma perna esticada, outra flexionada na vertical repousando o cotovelo, relaxa enquanto o cachorro o espera refastelado no chão, sempre fiel aos movimentos do dono. Pelo portão passam donas de casa com suas sacolas e eventualmente guarda-chuvas protegendo-as do sol. Pessoas voltam do trabalho, crianças jogam bola ou taco mais no fim da rua. De um lado do céu já dá pra ver o reflexo da lua com um sorriso, às vezes tímido, outras gigante, brincando de pega-pega com o sol cansado a se pôr.

 Pardais - e excepcionalmente outros pássaros - vão e vêm do telhado aos fios do poste. Quando mais novo, tentava acertá-los jogando pedaços de madeira - por sorte sua mira não era boa e jamais atingiu seu objetivo. Não queria matar, apenas olhar um deles de perto por um tempo em suas mãos e depois deixá-lo voar.

As moscas já não tinham a mesma sorte. Chegava a apanhar no quintal até 15 em um dia e dar para as formigas, que moravam nas frestas do beiral da janela da sala, atrás do xaxim de renda portuguesa. Talvez seu ato mais cruel na vida tenha sido arrancar-lhes uma das asas e passar minutos vendo-as se debatendo enquanto eram devoradas pelas formigas. Esperava até o momento em que arrancavam-lhe a cabeça para então pegar outra, e outra. Não, não há orgulho nisso, coisa de criança, mas era uma forma de distração, além do pseudo-argumento que estava fazendo um bem, já que a morte daquele inseto servia para alimentar outro.

O espaço é grande e não sente tédio. Conversa com o "pé de bichinhos brancos" - que nunca soube do que era, mas deu esse apelido por causa das manchas -, vê folhas que mal alcança se fecharem quando o sol vai embora, olha a magra goiabeira e ri ao falar "jurubeba", ambas plantadas "atrás da casa" (quando na verdade era na parte lateral).

Observa as pipas nas ruas mas não sente inveja de quem pode empiná-las. Na maior parte do tempo sua imaginação basta. No balde do tanque, coloca seus bonequinhos para nadar no "oceano". O já citado xaxim se transforma em uma ilha. Cada cômodo vira uma "dimensão" pela qual os personagens atravessam. E o "Show de Bonecos" que dirigia era transmitido para China e Índia, muito antes desses países serem considerados emergentes.

Eventualmente o bolo de laranja, desses industrializados mesmo, partidinho no pires com um copo de leite faz a alegria do seu lanche.Mais cedo, quando o cheiro da cozinha invade a casa, vai até a avó, que lhe dá almôndegas antes do almoço. Ajuda o tio a trocar a água e o alpiste dos pássaros que ficavam nas gaiolas - um casal de canários chegou a ter dois filhotes e, passando a observar o crescimento deles, deixou de lado os pobres pardais.

Os dias eram leves como o vento que beijava sem pressa seu rosto no murinho. Tantos anos depois, em uma tarde de chuva sem terraço, animais, plantas ou almôndegas, o vento traz de volta na janela, sem melancolia, as lembranças que tantas vezes presenciou.